O “gnomon” de Saint-Sulpice 10 Ago 2007 Saint-Sulpice, construída no século XII, impressiona por suas dimensões. Embora suntuosa na arquitetura, nas pinturas e nas esculturas, possui um mobiliário característico de uma pobreza franciscana. Poucos bancos. O que se vê são grupos de cadeiras de madeira, com assento de palha, emendadas com uma travessa. Eu e minha mulher voltávamos do altar principal caminhando lentamente pelo corredor norte quando ela me chamou: “olha aquele obelisco lá no canto ... parece relacionado com astronomia.” Fui olhar. A inscrição em latim no pé do obelisco permitia entender que se tratava mesmo de um “gnomon”*. Tentei traduzir o texto, mas meu conhecimento do latim aprendido no ginásio, há mais de cinqüenta anos, apenas permitiu-me entender que se tratava de um “gnomon” mandado construir pela igreja para determinar a data da páscoa através da passagem meridiana do Sol no equinócio de primavera. Já era o bastante para me interessar pelos detalhes. Também não passaram despercebidas algumas partes apagadas do texto, censuradas politicamente na Revolução. Essa igreja exerce um fascínio especial. Sem dúvida, seus estranhos sinais, aparentemente inexplicáveis para os leigos, acabam acirrando a imaginação de quem se vale dela para fazer sucesso como, por exemplo, os escritores de ficção. Após uma observação mais atenta, pude perceber que havia uma linha dourada central que se estendia ao longo do “gnomom” e continuava pelo chão atravessando a igreja de forma um pouco oblíqua. Estava mesmo sem entender que serventia teria um “gnomon” no interior de uma igreja, onde supostamente não bate Sol, uma vez que a função do “gnomon” é permitir um estudo do movimento do Sol em função da sombra projetada. Então continuei seguindo a linha dourada pelo chão da igreja. Quase em frente ao altar principal surgiu um disco dourado. Mais adiante, depois de atravessar uma mureta que protegia a mudança de nível do chão, nova marca surgiu sobre a linha. A linha continuou até desaparecer na escuridão do fundo de uma capela lateral. A igreja de Saint-Sulpice possui uma capela lateral, com altar e tudo, para cada uma das estações da via sacra de Jesus Cristo. Então, olhei para cima, na direção da linha, e pude observar que um dos vidros do enorme vitral havia sido substituído por uma placa retangular escura. “Eureka”!!!! Finalmente eu havia compreendido o funcionamento daquele “gnomon”. Percebi também que o “gnomon” verdadeiro não é o obelisco e sim o retângulo na janela. O obelisco é apenas um monumento que serve de antepara para dar continuidade à linha dourada, possuindo a marca para quando a sombra do retângulo da janela atingir o seu afastamento máximo no solstício de inverno. Embora a igreja seja imensa , ainda foi pequena para conter a extensão da linha que seria necessária se ela se mantivesse no plano do chão. Estava exultante com minha descoberta. Quando voltei para junto ao obelisco, percebi na parede lateral, um pouco distante, um pequeno quadro com folhas fixadas, como se fossem boletins para os fiéis. Minha “descoberta” estava toda explicada nessas folhas. Confesso que fiquei um pouco decepcionado. Na realidade havia sido apenas uma redescoberta. Le Gnomon De L'eglise Saint-Sulpice
Resumindo. A linha dourada marca o meridiano geográfico (linha imaginária que passa pelo zênite de um local e pelos pólos da Terra). Ela se estende na direção Norte-Sul. O meio dia verdadeiro, ou meio dia solar do local, corresponde ao momento em que o Sol cruza o meridiano culminando ou atingindo sua maior altura no seu trânsito diurno. No desenho, o ponto A marcado sobre o obelisco será atingido pela sombra do retângulo da janela no momento da culminação solar do dia 21 de dezembro, definindo o solstício de inverno no hemisfério norte. A sombra atinge o ponto B, que na fotografia aparece como um disco dourado, nos dias de equinócio. Em 21 de março, equinócio de primavera, vinda do obelisco para a janela e em 23 de setembro, equinócio de outono, movendo-se em sentido contrário. A data da páscoa é definida como o domingo que segue a primeira lua cheia apos o equinócio de primavera no hemisfério norte. O meridiano de Saint-Sulpice já serviu como origem da longitude. Foi somente em 1884, na Conferência Internacional do Meridiano em Washington, que vinte e seis paises concordaram em usar o meridiano de Greenwich como o marco zero da longitude. Apenas a França e o Brasil não o reconheceram e continuaram utilizando o meridiano de Saint-Sulpice ate 1911.
Os transeuntes que passarem pela estreita rua lateral (rue Palatine), ao olharem para cima, poderão observar o histórico “gnomon”. Possivelmente a maioria pensará tratar-se apenas de um remendo mal feito no vitral da igreja. Paris, 10 de agosto de 2007. |
[Popa]: Este artigo é voltado aos Capitães Am. que, tendo estudado astronomia para a habilitação, o valorizarão de forma diferenciada.
O Comandante Plinio Fasolo Bumerang /VDS é astrônomo e até recentemente lecionava astronomia na PUC-RS.